30 setembro, 2009

Contra-indicação

Você não entende, nunca entende. Mesmo assim deita-se sobre mim como se me soubesse toda. E eu concordo, me doo, me estendo sob suas vontades, coisa de quem não se encontra e prefere perder-se a sentir-se santa. Gosto de viver à margem, sendo lambida pelas bordas.
Mesmo sem entender nada você me devora. É um bicho faminto e acha que precisa me fazer presa para que eu seja sua.

Relaxa honey. Ao menos uma vez. Seja doce, seja cortez, seja romântico, não dói amor. Amor não dói.
Precisa me deixar marcas dos dedos, dos dentes, dos lábios, quando você inteiro já o é? O ferro que sangra meus quartos é o mesmo que cravou em mim a tua marca. Não sou gado pra ser marcada, mas sei que sou do teu agrado, por isso monta nas minhas ancas e joga o laço.
E eu entrelaço, me entrego. Sou vítima do teu ego, deleite pro teu cansaço de homem sério.

Ah honey, disseram que isso é paixão. Andei febril, desorientada, nem te falei nada. Tive medo que medrasse diante tamanho risco. Prometi que não me apaixonaria não foi? E não vou. Isso passa. Já tomei uns antitérmicos e passei o olho na tua caixa de recados.
Vou voltar às bordas e me contentar com as tuas lambidas.
Quanto à doçura... deixa honey, prefiro apimentar nossas noites e deixar os açúcares aos mais corajosos.
Afinal, sou pré-diabética, seria um risco desnecessário e até letal.

Monica San

Prometeu


















Permito-me hoje
ou "a partir de"
(que importa?)
importa
é que me deixo
à porta, ao varejo
a quem dê mais
ou,
a quem de desejo

ademais
ofereço o beijo
que outrora foi
ou seria teu
agora é sobejo
do fogo
que supunha meu

Doo o que resta
das tais promessas
e gozo

abundo meu gozo
noutro corpo

e esgoto

o fogo
que me perdeu.


Monica San

Solstício de verão















C'est la vie!
Me desamarra amor
não me faz tua
assim não

Desata o que não ata
e deixa aberta a porta

Vie, l'amour!
Depois volta
engata e me ata
desacata
e ama

De porta aberta
amor de sol
lençol
chama.

Monica San

13 setembro, 2009

Transcendência




















Transcendência

Era tanto sentimento, tanto desejo, que ela não sabia mais onde colocar tudo aquilo. Sentia-se em ponto de explodir, um vulcão em erupção pronto a devastar tudo quanto estivesse em seu caminho. E o peito inchava, os olhos ardiam, do útero em chamas reverberavam arrepios e
gemidos insanos. Suas palavras eram febris, e os gestos eram imensos, pareciam alcançar o nirvana. Agigantava-se vestida daquele sentimento.

E ele estava lá, como sempre. O olhar pueril escondia toda a ferocidade de um guerreiro, de um predador silencioso. Dominava a situação e encantava com seu jeito dócil e com as artimanhas de um filhote desajeitado. Mas era um lobo criado, sabia muito bem como enredar e prender. Devorá-la seria apenas mais um de seus troféus, (pensava ela).

O que eles não sabiam, é que nem os gigantes e nem os lobos são incólumes diante de tanto encantamento. Quando ela, tomada de um impulso cruel que lhe causava calafrios, tocou seus olhos e disse:

- Eu te amo.

Ele, tão forte e imponente, sentiu-se inflar e inflamar de um sentimento único. Era felicidade, por saber-se tão amado.
Não houve promessas, nem juras de amor. Apenas silêncio de almas. E olhares que se cruzavam mesmo sem se tocarem. Eles sabiam-se amantes, cada um a seu modo, e isso era maior do que tudo, suplantava a compreensão humana e transcendia o cosmo.

E ela adormeceu, certa de que o Sol o traria de volta, todos os dias.

Monica San

04 setembro, 2009

Nada de nada








Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien.

Ni le bien qu'on m'a fait,
ni le mal, tout ça m'est bien égal.

(Non, Je Ne Regrette Rien - Piaf)










Sentia-se tão cansada que as pálpebras pareciam carregar pedras. As mãos trêmulas não governavam mais as agulhas, e o tricô nunca chegava ao fim. Os lábios ressequidos e sensíveis já não se davam aos sabores fortes e encorpados como era de gosto, e a boa e velha pimentinha era coisa do passado. As lembranças já amareladas ou dependuradas pelas paredes eram companhias silenciosas e por vezes, intrusas nos seus momentos de solidão consentida. Insistiam em não deixá-la em paz, mesmo sabendo que escolhera terminar seus dias assim.

Foram anos de espera, mas ele nunca veio.
Abriu o baú empoeirado, guardou o tricô, as agulhas, os quadros.
Praguejou contra cada um deles: fodam-se! Fechou o velho baú, acenou uma banana, e desceu as escadas.
Degrau a degrau, alisando o corrimão com certa calidez, sorriu.
Impossível não lembrar-se.
Boas lembranças! Aquelas sim eram dígnas das paredes em marfim clarinho, tão bem conservadas e adornadas pelas luminárias francesas de extremo bom gosto (escolhidas a dedo pela mãe, neta de franceses e de uma delicadeza incomparável).
Mas quem haveria de registrar suas peripécias pelo corrimão? A velha câmera trazia consigo apenas as "boas" lembranças de família. Ao contrário, ocupavam-se todos em castigá-la com aves-marias, ladainhas, e salve-rainhas, pela fornicação na escadaria.
Desceu sorrindo, sentia-se bem por estar finalmente sozinha.
Ele não veio, nunca. Embora jamais tivesse perdido as esperanças.
Por vezes sentiu-se penetrada de uma forma incompreensível, sentia o peso do corpo sobre o seu, o apetite, os poemas de amor sussurrados ao ouvido, o gozo derramado em seu leito. Acordava nua, plena, leve. Sempre sozinha.
Corria para a velha escrivaninha e registrava tórridas histórias, suas fantasias solitárias, sentia-se compensada pela espera. Pensava que, ao menos produzia bons trabalhos e talvez isso tivesse valor algum dia.

Ao pé da escada ergueu novamente os olhos e reviu a cena.
Escorregava de bruços, ainda com o uniforme do colégio (saia azul marinho, meias três quartos, camiseta branca), protegia os  pequenos seios com os braços e descia.
- Ah, que lindo! - sussurrava o primo, bem baixinho, lá embaixo.
E suspirava encantado escondendo com os cadernos o volume que se formava debaixo da calça azul marinho. Podia-se notar o brilho nos olhos e a cara de bobo. Riu-se.
Na velha vitrola, Piaf lhe fazia companhia.
Sentiu-se úmida, sentiu-se viva.
- Talvez ele estivesse ali o tempo todo.

Monica San

Oralidade

Procuro no céu da tua boca
metáforas perfeitas
que traduzam a tua língua

Dos pronomes possessivos
me livro num beijo longo
e na acidez da saliva

Hoje,
nossa oração é subordinada
entoada num cântico tântrico
e ao sabor de Baco.

Evoé!

*********************************************Monica San

Contador de histórias infernais


Beijo-te
engulo a fala
conto histórias

de línguas
e de almas

uma, duas, três

trespassada
no teu corpo
parasita
do teu fogo

meu inferno.

Monica San

Cria


Caí da própria altura
ao tentar tocar o céu

desfalecida, sentenciei-me
às quimeras.

Deixei de crer em anjos
agora alimento feras.

Monica San

Preamar



Lua imensa, cheia, carrega na perfeição de sua forma toda a beleza de um bucho em pleno gozo fecundo. Prenhe de amantes que em sua órbita depositam olhares libidinosos, urros, uivos e a sanha de corpos em chamas.
Reverbero à sua sombra, cálida e alucinante, vazo e estravazo em rompantes lunáticos.
Torno em loba a mulher quando a maré sobe, e uivo em sua direção como a tomá-la por cúmplice dos ardores que me castigam.
Vou aos confins de céu e inferno, e espero.
Pela próxima cheia, pelo uivo alucinado dos amantes, por um lobo faminto... que me faça presa na sua orbe.

Monica San

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