04 setembro, 2009

Nada de nada








Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien.

Ni le bien qu'on m'a fait,
ni le mal, tout ça m'est bien égal.

(Non, Je Ne Regrette Rien - Piaf)










Sentia-se tão cansada que as pálpebras pareciam carregar pedras. As mãos trêmulas não governavam mais as agulhas, e o tricô nunca chegava ao fim. Os lábios ressequidos e sensíveis já não se davam aos sabores fortes e encorpados como era de gosto, e a boa e velha pimentinha era coisa do passado. As lembranças já amareladas ou dependuradas pelas paredes eram companhias silenciosas e por vezes, intrusas nos seus momentos de solidão consentida. Insistiam em não deixá-la em paz, mesmo sabendo que escolhera terminar seus dias assim.

Foram anos de espera, mas ele nunca veio.
Abriu o baú empoeirado, guardou o tricô, as agulhas, os quadros.
Praguejou contra cada um deles: fodam-se! Fechou o velho baú, acenou uma banana, e desceu as escadas.
Degrau a degrau, alisando o corrimão com certa calidez, sorriu.
Impossível não lembrar-se.
Boas lembranças! Aquelas sim eram dígnas das paredes em marfim clarinho, tão bem conservadas e adornadas pelas luminárias francesas de extremo bom gosto (escolhidas a dedo pela mãe, neta de franceses e de uma delicadeza incomparável).
Mas quem haveria de registrar suas peripécias pelo corrimão? A velha câmera trazia consigo apenas as "boas" lembranças de família. Ao contrário, ocupavam-se todos em castigá-la com aves-marias, ladainhas, e salve-rainhas, pela fornicação na escadaria.
Desceu sorrindo, sentia-se bem por estar finalmente sozinha.
Ele não veio, nunca. Embora jamais tivesse perdido as esperanças.
Por vezes sentiu-se penetrada de uma forma incompreensível, sentia o peso do corpo sobre o seu, o apetite, os poemas de amor sussurrados ao ouvido, o gozo derramado em seu leito. Acordava nua, plena, leve. Sempre sozinha.
Corria para a velha escrivaninha e registrava tórridas histórias, suas fantasias solitárias, sentia-se compensada pela espera. Pensava que, ao menos produzia bons trabalhos e talvez isso tivesse valor algum dia.

Ao pé da escada ergueu novamente os olhos e reviu a cena.
Escorregava de bruços, ainda com o uniforme do colégio (saia azul marinho, meias três quartos, camiseta branca), protegia os  pequenos seios com os braços e descia.
- Ah, que lindo! - sussurrava o primo, bem baixinho, lá embaixo.
E suspirava encantado escondendo com os cadernos o volume que se formava debaixo da calça azul marinho. Podia-se notar o brilho nos olhos e a cara de bobo. Riu-se.
Na velha vitrola, Piaf lhe fazia companhia.
Sentiu-se úmida, sentiu-se viva.
- Talvez ele estivesse ali o tempo todo.

Monica San

5 comentários:

  1. Moniquinha!
    Como não admirá-la!?
    Você desenha o ambiente arquiteta a situação!
    parabéns menina, És um grande escritora.
    Em frente você nos contará muitas belas histórias!
    Beijos!

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  2. Boa noite, Moniquinha.
    Passando para apreciar o teu jardim.
    Um abraço, poetisa.

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  3. Belíssimo e desconcertantemente triste. As cores da solidão estão marcadas aqui com um sensorialismo que impressiona. Acompanha-se os "flash-back" com uma tranquilidade de quem está na pele da personagem. Que aliás, está vivo.
    Parabéns querida Mônica!

    REI.

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  4. Primeira vez por aqui e adorei, vou virar seguidora. Nossa! Imaginei toda a cena.
    Parabéns!
    Bjs!

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  5. clap, clap, clap...
    nem sei o que dizer, mas a brasilidade, misturada com a parisiense, mexeu com minha alma Mo, parabéns! beijos

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